29/05/2009

Falta cumprir-se Portugal



SEGUNDA PARTE: MAR PORTUGUEZ

Possessio maris.

I. O INFANTE
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te portuguez..
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

in Mensagem, Fernando Pessoa

24/05/2009

PSSST!


Macarronismos…


Aqui há dias senti-me muito mediterrânica. É uma sensação fantástica, claro, mas descabida para quem vive nos Açores. Tudo isto porque na rádio falaram na Macarronésia. Rigorrosamente na Macarronésia. Que deve ser a terra onde se produz o macarrão, lá para os lados de Itália, portanto mais perto do Mediterrâneo. Daí a sensação.


E quem fica na Macarronésia? Os Açorres, a Madeirra, as Canárrias e Cabo Verrde (olhem lá o jeito que deu para esta crónica o facto de todos estes arquipélagos terem um R no nome!). Altamente macarrónico!


A propósito: macarrão tanto pode vir de «makron», de «makaria», estas de origem grega, ou do italiano «macchare»; para ajudar, macarrão também pode ser um pequeno moitão de ferro. Macarrónico significa burlesco ou ininteligível*.


Para além de um normalíssimo tique de fala ou de se ser de Setúbal, estamos a falar é da Macaronésia — conjunto de arquipélagos com perfil biogeográfico semelhante, localizado no Atlântico norte. Macaronésia é um vocábulo que provem do grego e conjuga as noções de «makáron» (feliz, afortunado) e de «nesoi» (ilhas); por isso, os antigos geógrafos consideravam como abençoadas as ilhas que ficavam a oeste do estreito de Gibraltar.


E por falar em Atlântico, e num exercício de puro idílio geográfico, contei pelo menos 90 ilhas no lado norte e 16 no lado sul. Portanto, dizermos que somos ilhas do Atlântico também não é lá grande diferenciação.


Digamos Açores, Azores ou Azoren; leiamos à francesa ou japonesa; até podemos dizer Açorres… não importa, desde que sejamos sempre nós!


Publicado no Açoriano Oriental a 24 Maio 09


*no jornal foi publicada a palavra "inteligível" quando o que eu queria era dizer o contrário; é o resultado de fazer as coisas à pressa; as minhas desculpas.

17/05/2009

PSSST!


Oremos…

Não é de propósito, este título hoje, juro que não é. Mas esta semana apercebi-me da diferença que faz um H.

Para começar, há (com H, pois claro, porque é do verbo haver; não é nem primo afastado do “à”, a contracção da preposição A com o artigo A) a polémica do H-que-cai-ou-não-cai com o acordo ortográfico. Parece que não cai; pelo menos se não for empurrado. Em português do Brasil, escreve-se “úmido”, mas por uma questão de etimologia — é defendida a tese de que a palavra deriva do latim «umidus»; em Portugal, seguimos a variante «humidus», igualmente adoptada pelas línguas inglesa, francesa e castelhana. Na Europa, é húmido com H.

Mas adiante. Isto nem sequer é que me traz aqui hoje (H-que-não-cai), pois, em termos de humidade, mesmo que caísse, o significado da palavra não mudaria. O que mudaria seria, por exemplo, se caísse o H de hora. Confundir-se-ia com ORA do verbo orar (que significa rezar, discursar ou pedir; ora e perora estão no presente do indicativo ou no imperativo, e usam-se tanto em novos e grandiosos templos como em encontros políticos); com ORA, conjunção equivalente a “ademais”; com ORA, interjeição de desprezo; com ORA, parte da locução ora…ora; e com ORA, de agora, como na expressão “por ora”. E esta veio mesmo a calhar: “por ora” significa “por enquanto”. Mas imagine que coloca aí um H — fica “por hora”. Já é outra história, já implica negociações, impostos, papelada e remunerações.

Donde concluo que se deve ter muito cuidado com o local onde pomos os nossos Hs. Dignifiquemo-los. Afinal sempre fazem parte de palavras como humano ou habitação. Não seja hebetante!

Publicado no Açoriano Oriental a 17 Maio 09

10/05/2009

PSSST!


Dias difíceis

Alguns conselhos de saúde são realmente pouco saudáveis. Outro dia, comentei que me doía a garganta e, prontamente, uma criatura adiantou-se e aconselhou-me que “bocejasse com água morna e sal grosso” pois era muito bom! Ora, eu já acho extremamente difícil controlar um bocejo normal, quanto mais um regado por água salgada. E apesar do oposto não ter acontecido, posso imaginar alguém a dizer que bochechou imenso durante a missa. A confusão entre bocejar e bochechar poderá acontecer por duas razões: têm sonoridade semelhante; ocorrem na mesma área do corpo. Mas não são o mesmo: bocejar é sinal de sono ou enfado; e bochechar, bem, tem a ver com higiene oral — você enche as bochechas com um líquido e depois faz movimentos de agitação. Na verdade, eu acho que para a garganta o melhor seria gargarejar, mas pronto, isto sou eu a ser picuinhas….

Outra confusão hilariante ocorre entre mugir e mungir. Um deles é sinónimo de ordenhar. Qual? Pois… Bem sei que são extremamente semelhantes e que, para complicar, ambos se referem a vacas. Quem muge e quem munge? Muge a vaca (mugir é o berro da vaca; em termos figurativos, significa bramir, rugir) e munge o lavrador (mungir é ordenhar; pode também significar explorar ou despejar). Se a vaca muge enquanto é mungida, isso já é outra história e cada um sabe de si.

Já agora acrescento que limiar e linear são coisas diferentes — limiar é a soleira da porta ou o começo de algo; linear é porque tem linhas ou é alongado. Donde concluo que o “linear da realidade” de que (erradamente) ouço falar deve ser uma coisa rectilínea e organizadíssima… Linearmente no limiar!

Publicado no Açoriano Oriental a 10 Maio 09

03/05/2009

PSSST!


Sai um particípio bem passado!
O que é que você sabe sobre particípios passados? Que tem a dizer sobre o uso dos mesmos? Vamos ver cada palavra: «particípio» é porque participa em alguma coisa; «passado» porque já foi, já acabou e encontra-se… morto, matado, morrido e enterrado.
Na verdade, o particípio passado é uma forma nominal que participa da natureza do verbo, funciona como um adjectivo (diz da condição de…) e se conjuga com um verbo auxiliar.
E aí é que está o busílis. É que, dependendo do auxiliar, pode haver diferentes particípios. São os duplos — não os do cinema, hercúleos sósias do herói da fita; não aquelas criaturas que sofrem de camaleonismo social e político; nem sequer falo de algo que seja duas vezes maior…
Regra geral (e, como sempre, há excepções), o particípio regular (a forma mais longa) conjuga-se com os verbos ter/haver e o irregular (o modelo compacto) com ser/estar. Por isso se podem usar os vocábulos morto, matado e morrido — mas veja lá como! Alguém pode estar morto, mas ter matado ou morrido. Fulano de tal foi pago para calar o bico, mas alguém tinha pagado para tal. O facto de se ter salvado a reputação de sicrano não significa que esteja realmente salvo. Enfim, não faltam exemplos. Gosto especialmente quando o particípio passado irregular, o da versão “fast-food”, se confunde com um adjectivo: é o caso de dissoluto. Como é irregular, alinha-se com ser/estar: a assembleia foi dissoluta; mas, por causa das confusões, deve fazer-se a tal excepção e preferir… dissolvida; assim poupa o dissoluto para casos em que a dissolução seja de carácter. Deixe estar que não faltam oportunidades!


Publicado no Açoriano Oriental a 3 Maio 09