06/11/2008

Lembrei-me disto!

No workshop de escrita criativo conduzido pelo Nuno Costa Santos no "Rotas", uma das tarefas foi escolher 10 palavras preferidas. Escolhi: ameba, atilho, atroz, clarabóia, clausura, mnemónica, onomatopeia, oscular, placebo e resquício. Não me perguntem porquê, foi do que me lembrei. A tarefa seguinte foi escrever um pequeno conto onde as 10 palavras fossem utilizadas. Hoje lembrei-me, com saudade, desse workshop e decidi publicar aqui o conto.
Um Acordar Atroz
Naquele dia sentia-se muito pequeno.
Acordara demasiado cedo. Ainda não era hora de entrar na rotina. Não, não poderia ainda levantar-se, dobrar as cobertas da cama para trás em harmónio, colocar os pés no chão, calçar os chinelos, ir à casa de banho, levantar a tampa da sanita…
Não. Teria de esperar mais um pouco para que a luz do dia inundasse a clarabóia ao fundo do quarto e lhe desse o sinal esperado para levantar-se, dobrar as cobertas da cama para trás em harmónio, colocar os pés no chão…
Torceu as mãos, como se assim enxugasse aquele nervoso miudinho. Estava realmente a sentir-se estranho. Pequeno. Minúsculo. Microscópico. Uma ameba.
A mãe fora muito clara quando dissera que a função começava às cinco. Pontualmente. “Sharp”, como ela dissera, em mais um assomo de cosmopolitismo caquéctico.
Para afastar a perturbação, voltou a pensar na sua rotina. Era como uma ladainha, tão reconfortante como as que ouvira em criança quando ia à igreja com a avó, um cântico que o embalava, poderosas onomatopeias de devoção.
Os quadrados da luz do dia já resplandeciam no chão do quarto.
Era agora.
Sentou-se. Dobrou as cobertas da cama para trás em harmónio. Colocou os pés no chão. Calçou os chinelos. Rumou para a casa de banho. Levantou a tampa da sanita.
O estilhaçar do toque do telefone paralisou-o.
A clausura quebrada, a rotina escangalhada, a mnemónica dos gestos perdida.
Fechou a tampa da sanita. Reatou os atilhos do pijama. Deu meia volta e estacou diante do telefone, que continuava a tilintar estridentemente.
Seria a mãe, com um pedido extravagante amenizado por um frívolo ósculo final? Seria uma melíflua voz desconhecida, tentando convencê-lo a aderir ao produto Z? A um qualquer placebo que caucionasse a sua felicidade?
Com um resquício de coragem, atendeu.
Era engano.

Sem comentários: