26/04/2010

PSSST!


A autonomia do U
A letrinha que hoje me levanta dúvidas é o Q. Que, na verdade, não é gente de corpo inteiro se não levar o U. Pensando melhor, o busílis da questão até não é o Q, mas sim o U que forçosamente o acompanha, suporta e justifica. Se o U é surdo ou sonoro, esquecido ou pronunciado, essa é que é a questão (kestão).
As regras dizem que as vogais ‘e’ + ‘i’ não necessitam do U sonoro. Entra mudo e sai calado. Ou não, pois existem — abundam! — excepções, apenas e só para contrariar a regra. Sequela (…kwé…). Tranquilo (…kwi…). Consequência (…kwên…). Cinquenta (…kwen…). E até há exemplos em que se lê duas vezes o U: quinquagésimo (kwinkwa…) ou quinquecelular (kwinkwé…). Um exercício vocal algo cómico, convenhamos, mas perfeitamente legítimo. Obrigatório, até!
No português de tempos idos, existia um utilíssimo trema (¨) que indicava aos falantes a indispensável leitura do U. Caiu, como já caíram tantas outras coisas por via da evolução linguística (…gwí…). Mas que dava jeito, isso dava. Nem que fosse para não se confundirem certas palavras. Que, em primeiro lugar, não deveriam ser confundidas, pois a letra ‘a’ depois de QU obriga à leitura do U: quatro, quarenta (mas não catorze), quamanho, quaisquer, qualidade. Mas, e se a diferença for apenas a leitura desse U? Como em quartel e cartel. Apesar de cartel também significar um escrito provocatório ou um cartaz, é do sentido de coligação ou monopólio que nos lembramos logo. Quartel, entre muitos significados, é um período de 25 anos, são alojamentos militares ou um paradeiro. O cartel do quartel? Um quartel sem cartel (sem tréguas)? Um quartel do primeiro quartel do séc. XVI? Enfim, pode não parecer, mas estas não são coisas de quiqueriqui…


Publicado no Açoriano Oriental a 25 Abril 2010

18/04/2010

PSSST!

As palavras (mal)ditas

Nem sei se já falei deste assunto; às tantas, já me repito. Mas, ao fim de dois anos, creio que não preciso de me desculpar perante vós, caros leitores, se acontecer repetir-me.

A questão é a da oralidade versus a escrita. Por favor leia as seguintes palavras com a velocidade normal do registo informal: privilégio — diferente — definitivo. O que é que lhe saiu? Qualquer coisa como «previlégio» — «deferente» — «defenitivo»? Não se martirize, é perfeitamente natural. Tão natural quanto, por cá, se ouvir mesmo «previlége» ou «defenitive». Apesar de erradas, as verbalizações ainda escapam; o que não escapa é ter-se este tipo de incorrecção escarrapachada em folhetos publicitários ou cartazes gigantescos. Porque o pessoal começa a pensar que até está certo (e se aqueles senhores puseram aquilo por escrito na publicidade é porque está certo, não é?) e adere logo.

E se tiver de distinguir (olhem, mais um: «destinguir») entre diferir e deferir? Ditos depressa soam ao mesmo. Mas não são. Diferir é adiar ou discordar; deferir é conceder, outorgar. Difiro, portanto, que se confundam.

Tal como podem confundir-se o diferente com o deferente. O primeiro, dito depressa, soa ao segundo, sem qualquer deferência para a diferença que os separa. É deferente quem é atencioso, condescendente; diferente é aquilo que não é igual, que é distinto e diverso. Cá por mim podemos ser todos um pouco mais deferentes e diferentes, desde que não discriminemos quem o não é.

E é com a devida deferência que deixo aqui a minha vénia aos 175 (vá, todos em coro a recitar o ordinal: centésimo septuagésimo quinto!) anos do Açoriano Oriental!

Publicado no Açoriano Oriental a 18 Abril 2010

12/04/2010

PSSST!

Isto não é um peixe
Se existem novas formas para comunicarmos — Twitter, Facebook, MySpace, Badoo, Hi5, só para nomear alguns — então também existem novas formas para disparatarmos. Tirando os erros de simpatia, os dedos desastrados ou a digitação supersónica, há aqui um vastíssimo campo para exploração linguística. E humorística.
Uma dessas preciosidades foi a palavra “pelágio”. Que era (imagino que por digitação desajeitada…) para ser ‘plágio’. Mas que acabou por ser um mergulho de chapa. Pois pelágico relaciona-se com o mar, em traços muito largos. É claro que um plágio pode ser algo de tão profundo e vasto (profundamente aviltante? vastamente desrespeitoso?) que acaba por se transformar, metaforicamente, num acto pelágico. ‘Plágio’, que na origem está associado às noções de rapto ou obliquidade, significa copiar ou imitar de forma fraudulenta, sem respeito pelos direitos de autor; um ‘plagiedro’, por exemplo, é um cristal com faces oblíquas; já ‘pelágico’ usa-se para designar o que é oceânico, ou os peixes de profundidade; ‘pelágia’ é uma espécie de alforreca; ‘pelagiano’ tanto pode ser uma variante do adjectivo pelágico como um simpático albatroz; e, só para confundir, ‘plagióstomo’ é uma mistura dos dois — uma ordem de peixes, só que de boca oblíqua (como as raias)! Mais ‘e’, menos ‘e’…
Se confundir era o objectivo então o emprego da palavra “homolgado” em território automobilístico é um sucesso absoluto. É só fazer a ponte: carros = chapa, chapa = amolgado. Ou “homolgado”? Não. ‘Homologado’ era o termo certinho, mas que diacho, mais ‘h’ menos ‘h’, mais ‘a’ menos ‘o’, fica tudo como o peixe. Com a boca de lado.
Publicado no Açoriano Oriental a 11 Abril 2010