30/05/2010

15 anos do "Terra Nostra"

Este é o texto que criei, com imenso orgulho, para a edição especial dos 15 anos do jornal "Terra Nostra", fazendo assim parte de um vasto leque de colaboradores.



O Papel do “Terra Nostra”

Como se uma folha não soubesse o seu papel. Ser espelho dos humores da Natureza. Ser colagem de matizes em formas irregulares. Ser lembrete de liberdade na clausura de um livro. Ter o impulso do voo e a forma das nuvens. E desfalecer aos nossos pés no meio do caos citadino. Para que não nos esqueçamos de erguer o olhar. Mas ser apenas folha. De papel. Ser espectro de uma qualquer floresta-pulmão-verde. Ser do todo uma parte incontornável. Ter na face o poder de a face volver. E desaparecer amarfanhada no canto de um cesto irado. Mas ser apenas e sempre papel. E numa só folha ser conto, aguarela, poema, retrato, ficção, paisagem... ou ser este jornal.

Ao fim de 15 anos, o “Terra Nostra” tem um papel incontornável na nossa semana. Porque todas as semanas fala, preto no branco, do que nos aflige, nos alegra, nos emociona ou nos une. Simplesmente, o que nos une. Que será sempre mais do que o que nos separa.

Ao fim de 15 anos, o “Terra Nostra” faz-nos erguer o olhar para realidades que nos passam ao lado todos os dias, que nos circundam como o mar as ilhas mas que, mesmo assim, não vemos. Sem voltar a face ao que perturba a nossa sociedade, o “Terra Nostra” solidariza-se com quem realmente precisa de um abraço mais estreitado, de uma refeição mais fortificante, de uma palavra mais consistente. Porque a solidariedade social não é um acto, é uma atitude. Não é um papel, tem um papel.

Nestes seus 15 anos, ao “Terra Nostra” não importa qual a curva do seu gráfico de vendas, mas qual a marca que pode deixar na vida dos que nem sempre são lembrados.

Nestes últimos 15 anos, muitas foram as mudanças sociais, culturais e económicas; muitos foram os momentos de dor, desânimo e desvario. Mas também muitas foram as ocasiões para alegria, esperança e sucesso.

E partilha. Que é o papel que o “Terra Nostra” bem conhece. A partilha do que nos une. Na partilha do que nem sempre vemos.

Solidarizemo-nos, então, com este papel fundamental da não-indiferença. Pois ser do todo uma parte incontornável é ter o poder de a face não volver.

Muitos mais 15 anos, “Terra Nostra”, havemos de celebrar!

Maria das Mercês Pacheco

16/05/2010

PSSST!

Claustrofobia linguística

Se acha que realmente há falta de espaço na vida moderna, é capaz de ter toda a razão. A causa? Principalmente, por falta de discernimento. E de dedo. O primeiro para usar o segundo. Descodificando: espaço é o que faz falta entre algumas palavras e discernimento é o que é preciso para utilizar o dedo que deve pressionar a barra de espaço do teclado do computador (ou da máquina de escrever, aceitam-se métodos mais antiquados…).

A partir deste momento é que a coisa começa a interessar. Ou a partir desta linha, tanto faz. Pois ‘a partir de’ é uma locução prepositiva que significa ‘a principiar em’, podendo o ‘em’ ser um tempo ou um local: a partir da primeira fila de cadeiras ou a partir do dia 20. Aespaçopartirespaçode. Uma preposição de cada lado. E não “apartir” de, como tanta vez se vê. Conheço ‘apartar’, ‘apartamento’, ‘apartheid’ e ‘apartidário’; quanto ao último, pelo menos sei que existe no dicionário, mas não faço ideia se resta algum exemplar vivo. Ah, e ‘a partir de’ já inclui o ponto de partida.

A falta de espaço é igualmente notória em exemplos como “porcausa”, “derrepente”, “benvindo” e outros que consigam encontrar… sem esquecer as questões do ‘a fim’ vs ‘afim’ e do ‘à parte’ vs ‘aparte’, mas estes ficarão para uma próxima vez.

E se não tiver o ‘de’ depois do ‘a partir’, então o assunto é outro. ‘Estou a partir pedra’ ou ‘estou a partir o pão às fatias’ em nada se relacionam com a tal locução prepositiva, são apenas o verbo partir em conjugação perifrástica do infinito que, por cá, é caso raro e revezado pelo gerúndio: está chovendo!

A partir de agora o melhor é andar com uma barra de espaços na carteira…

Publicado no Açoriano Oriental a 16 Maio 2010

10/05/2010

Não há tascas como as do Senhor!

Porque as pessoas não vivem só de fé no Senhor Santo Cristo dos Milagres, há que alimentar o corpo. E já que esta é uma festa tipicamente açoriana – micaelense, de origem – nada como os petiscos da terra.

Comecemos pelo perímetro do Campo de São Francisco.

Por entre o rodopiar do carrossel, o “bum-tchibum” das filarmónicas e o troar dos altifalantes, aí, para entretenimento das crianças e desespero dos pais, abundam os galinhos de açúcar (em variantes multicolores), as batatas fritas estaladiças, as pipocas – antigas freirinhas brancas – os tremoços ou as nuvens de açúcar...

E que, nesses dias, se descartem as preocupações com uma dieta equilibrada ou se não pense na conta do dentista: três dias não são todos os dias!

Depois, quem sobe a Avenida Roberto Ivens, sob o tépido sol de Maio, é logo inundado pelos aromas do polvo guisado, dos torresmos torriscadinhos, das febras grelhadas, das iscas de fígado em abundante molho ou do fiel bife de vaca com generosas tiras de pimenta. Aliás, pimenta é sabor que nunca falta nos acepipes micaelenses, como se pode comprovar pelo ar cerradamente rubro dos tradicionais caranguejos do Senhor Santo Cristo.

Se a fome for pouca, há sempre os petiscos, que vão desde os humildes tremoços até ao regional chouriço, passando pelo inhame ou batata inglesa com massa de pimenta, os ovos de codorniz mergulhados em vinagre, as favas tenras ou a morcela reluzente. Para aconchegar bem o estômago, aconselha- -se o pão de milho, broa de devoção, ou o pão caseiro (se lhe propuserem uns papo-secos tresmalhados, faça ar de ofensa e mande de volta... ) para quem não perde pitada de um molhinho denso de sabor.

E se quiser uma solução de compromisso – conceito muito em voga – pode sempre recorrer ao prego ou à bifana no pão. Aí, o papo-seco é obrigatório.

Para regar, o vinho ou a cerveja, abundantemente consumidos – não desse tanta pimenta uma sede descomunal! E nem importa se o gosto fresco da cerveja se mistura com o travo a plástico dos copos; importa é o refrigério e a alegria de partilhar uma “loura” no meio da turba que não pára de passar. Aos teatotallers, resta sempre a Laranjada (quem não tem, da sua infância, memórias das bolhinhas de Laranjada a invadirem o céu da boca? – outros falariam do pirolito, mas isso já é jurássico!).

Como sobremesa, sem excepção, o gelado. Sucesso garantido, há p’ra menina e p’ro menino, é só descascar.

O cenário assemelha-se se, ao invés da Avenida, formos para os lados do Forte de São Brás, seguindo a maré do povo que visita a Feira... com a diferença que aí reinam as tasquinhas dos jovens finalistas de curso (com algumas comidas confeccionadas pelas suas diligentes mamãs) ou as de menus exóticos de países longínquos; se, ao degustar uma muamba ou uma cachupa, fechar bem os olhos, até acredita que mudou de latitude.

Se o objectivo é uma escolha mais formal (que isto das tascas tem muito que ver com a capacidade de uma pessoa aguentar-se de pé!), os restaurantes da cidade, próximos ou não do Campo de São Francisco, aderem em massa ao frenesi da altura; resultado, não há um espaço onde se possa digerir pacatamente uma refeição qualquer sem se ser invadido por visitantes ou peregrinos famintos de comida e consolados de fé. As ementas, bem, não variam muito das do resto do ano, mas que importa, são as Festas.

Contabilizando: entre balões e gelados para os miúdos, petiscos para o grupo, desenrolar de rifas e o apelo dos bazares, se calhar o gasto chegava para um plácido fim-de-semana no Hotel das Furnas, cozido incluído.

Mas, diga-se o que disser, não há nada como a excitação de percorrer as tasquinhas, os recantos, as barraquinhas e os tabuleiros da festa do Senhor. Pois o arraial é tradição bem portuguesa e se conseguirem encontrar uma só festa religiosa sem petiscos, eu arrumo a caneta e rendo-me às evidências.

Maria das Mercês Pacheco

(texto publicado há 500.000 anos numa revista apelidada 'Vidas', edição única)

PSSST!

(des)encontrão

E com esta vão três. Não é por senilidade ou falta de assunto, não senhores. É mesmo por revolta. Ou por cansaço. Pode também ser pela dor aguda que nasce dos tantos, imensos, tremendos encontrões que por aí andam. Ainda hoje assisti, pelo menos, a dois, via rádio.

Peço (e hoje é um bom dia para pedidos miraculosos), imploro a todos que sintam um impulso inevitável para proferirem as expressões ‘ao encontro de’ e ‘de encontro a’ que reflictam um pouco antes de o fazerem. Principalmente se tiverem um qualquer papel de liderança. Não lhes fica bem andarem por aí aos encontrões — um líder deve ser uma pessoa tranquila, concentrada nos seus afazeres, consciente das suas responsabilidades —, tropeçando nas suas próprias palavras em plena comunicação social.

Apanhar um encontrão aqui e acolá, vá, acontece. «Ai, desculpe, não o vi!»… Mas da maneira que as coisas andam actualmente, tanto encontrão só pode ter resultado maléfico. Epifania! Será por causa da confusão entre ir ‘ao encontro de’ e ir ‘de encontro a’ (sendo o primeiro sinónimo de concordância, e o segundo um banal e miserável encontrão) que o mundo se encontra da forma que está? Será? Adoraria que fosse, estaria tudo resolvido num instante! Bastaria obrigar todos os ‘desencontrados’ da língua portuguesa, os que repetidamente sugerem encontrões ao invés de concordância, repito, obrigá-los todos a pegar numa gramática, num dicionário, num caderninho de linhas (até poderia ser virtual, de portátil em punho) e estudar de novo. De volta à primeira classe! Que sonho bonito!

Despeço-me, pois vou agora para o Campo de São Francisco evitar ser abalroada pela multidão…

Publicado no Açoriano Oriental a 9 Maio 2010

03/05/2010

PSSST!


Fugir a língua para a (in)verdade


Bráctea. Sarrafo. Água-mestra. Fadegénico. Cominar. O que têm estas cinco palavras em comum? Nada. Bem, não é verdade, pois algo as une: pertencem a gírias de profissões, como engenharia civil ou medicina. E se nos dias de hoje há bastante contaminação entre gírias e se é comum encontrarmos palavras específicas num vocabulário generalizado, convém empregá-las sabendo — no mínimo! — o significado e uso das ditas.
Se eu decidir usar ‘fadegénico’, daria jeito saber que é um termo da medicina e que (iuc!) tem a ver com tecidos ulcerados. Posso também impressionar o pessoal, claro, e dizer que fulano é um enorme fadegénico, à guisa de insulto; ficava com um ar muito intelectual, quase erudito, mas mesmo assim não seria compreendida. O que não tem importância alguma, desde que me desse ares de entendida. Não sei se seria cominada pela situação (eu ajudo: ameaçada com pena ou castigo), mas espero bem que não…
O estudo da língua portuguesa também tem a sua gíria; ou jargão. Agradece-se o uso, desde que apropriado. Exemplo simples: pleonasmo. Ou redundância, ou repetição desnecessária, ou superabundância. Acabei de escrever um pleonasmo, mas o meu foi uma figura de estilo, feita de propósito, para reforçar a minha mensagem! Outro exemplo simples: eufemismo. Que é uma figura de linguagem usada para suavizar uma noção desagradável. Se eu disser que algo é uma ‘inverdade’, estou a usar um eufemismo, ou seja, estou a dizer que é uma mentira mas de forma suave (e mais rebuscada…); que sicrano é um amigo do alheio, em vez de ladrão; que o dinheiro não estica, ao invés de… ah, mas esperem, isso não é um eufemismo, é a realidade!

Publicado no Açoriano Oriental a 2 Maio 2010