29/03/2010

PSSST!

Programação básica
Que fizeram este fim-de-semana? Coisas muito divertidas? Terá sido algo como um conjunto de actividades planeadas para um certo período de tempo? Portanto, um programa, não foi? Ou terá sido um “pograma”…?
Nem sei qual será o mais interessante — o programa ou o “pograma” — mas parece-me que, de acordo com o que ouço por aí dizer, há mais “pogramas” do que programas.
Desconheço a razão. Não será bem um caso de troca do ‘R’ pelo ‘L’, como o Cebolinha faria; nem será uma trapalhada ao estilo de Elmer Fudd, famosa personagem dos «Looney Tunes. Apesar disso, tanto na comunicação social como na vida real, o “pograma” impera e desespera. Será assim tão difícil dizer aquele ‘R’ a seguir ao ‘P’? Treinemos: prrr(língua enrolada)ograma. Aconselho repetição várias vezes ao dia.
A deslocação do ‘R’ é um fenómeno que tem assombrado a língua portuguesa ao longo dos tempos e não é assim tão incomum encontrar versões como “percisar” ou “promenor”. Inclusive já ouvi “treceira”. Apesar de erradas, até são mais compreensíveis, uma vez que o ‘R’ (como o ‘L’) é uma consoante líquida, devido ao modo de articulação.
Seguindo esta lógica, dever-se-ia então ouvir “porgrama”, não é? Mas não. O ‘R’ simplesmente desaparece. Puf! Vai para o mesmo sítio onde se escondem as meias desirmanadas, os carregadores de telemóvel ou os nossos impostos. E até a acentuação muda de lugar: em vez de se ler ‘prográma’, o som assemelha-se mais a “pôgrama”. Já só falta desaparecer o outro ‘R’. Nessa altura, sugiro que contratemos um Indiana Jones da língua portuguesa… ou das meias desirmanadas, dos carregadores de telemóvel e dos nossos impostos.

Publicado no Açoriano Oriental a 28 Março 2010

22/03/2010

PSSST!

Verde, código, verde
Vinda de uma ida ao mercado, pus-me a pensar no quanto a nossa vida «comercial» mudou. Quando digo nossa refiro-me claramente à vida das pessoas que têm acesso a mais do que um modo de compras. E é aí que reside o busílis: ter acesso a mais que um modo de consumo é igual a mais qualidade de vida? Ou apenas a mais quantidade? Não sei se por alargarmos o leque de consumo estamos, na verdade, a prolongar, a acrescentar ou simplesmente a acumular…
Considerações filosóficas (das baratuchas, daquelas com cupões, promoções e descontos, apesar de não devolvermos o seu dinheiro se não ficar satisfeito com esta crónica!) à parte, já nos habituámos de tal forma aos prefixos ‘super’, ‘hiper’ e ‘mega’ que se não tivermos essa referência se calhar não reconheceremos o valor da coisa. O facto é que continuamos a mercanciar, mas fazemo-lo de forma sofisticada: não regateamos, sujeitamo-nos ao preço marcado; não trocamos bens, trocamos cartões e papelinhos; não escolhemos 5 cenouras suculentas, carregamos um saco de quilo; não compramos apenas o necessário, levamos também o acessório.
Obviamente que tudo isso tem vantagens, longe de mim negá-las ou sequer excluí-las, mas se na escala crescente de prefixos já galgámos até ao ‘mega’, tendo usufruído do ‘super’ e ‘hiper’ pelo caminho, que degrau vamos subir a seguir? Segundo a actual lógica de capacidade de armazenamento, será o ‘giga’. Depois disso virão o ‘tera’ e o ‘peta’, mas creio que nessa altura já haverá outros prefixos tão ou mais multiplicativos que o melhor é meter-me a caminho das compras antes que o meu ‘verde, código, verde’ expluda. Ou encolha…

Publicado no Açoriano Oriental a 21 Março 2010

15/03/2010

PSSST!

O que é um QI q.b.?
Qual é a coisa qual é ela que garantidamente recebemos de “bónus” quando compramos um aparelho electrónico? Ou uma peça de mobiliário do tipo monte-você-mesmo? O livro de instruções. Que, na verdade, é mais um presente envenenado do que um “bónus”. Daí as aspas. Entre os textos que se podem ler nesses livrinhos e os textos de, vá, uma sopa de pacote ou uma caixa de farinha para panquecas, prefiro os últimos. Sempre matam a fome.
Que tipo de inteligência é preciso ter para perceber livros de instruções? Um QI q.b. chegará ou será preciso ter uma inteligência artificial, tão artificial quanto a linguagem desses textos?
A inteligência lógico-matemática seria excelente, não fora o facto de haver pouco lógica e muitas palavrinhas. A inteligência linguística, claro, fundamental — afinal, trata-se de textos, mas tenho dúvidas de que seja suficiente. Inteligência espacial? Sim, boa ideia, principalmente se tiver de montar uma cadeira de acordo com o esquema apresentado. Nesse caso, recomendo a inteligência corporal-cinestésica, muito útil em casos de membros partidos e parafusos rolantes. Há sempre a hipótese da inteligência existencial, que permite ponderar longamente sobre a existência de instruções tão néscias. Por fim, para não desanimar, pode recorrer à inteligência emocional — aquela que permite que se mande o livro de instruções às urtigas e se passe a improvisar.
E livros de instruções para coisas realmente difíceis, há? Como a crise financeira, a cena política, a intolerância, impressos de impostos, a falta de piscas do condutor à nossa frente… e outros livros de instruções. Há desses?
Publicado no Açoriano Oriental a 14 Março 2010

07/03/2010

PSSST!

Potenciais desvirtudes

Há (há porque existem!) dias que ando a pensar na minha vida virtual. Apesar de — com enorme pena minha — não possuir um avatar que valha uns milhõezitos, a minha existência virtual acumula-se, desdobra-se e cruza-se com outras existências, igualmente virtuais, todos os dias. Não que ache que a minha existência virtual anda por aí a portar-se mal nas minhas costas (reais), nada disso, mas que demonstra uma espécie de emancipação púbere, lá isso demonstra.

A pergunta impõe-se: se virtual é antónimo de real, será que virtual é sinónimo de virtuoso?

Na verdade, não. Tanto na origem como no significado, virtual e virtuoso — e todos os vocábulos relacionados — não são nem sinónimos nem semelhantes. Virtual é o que existe em potencial, o que é possível; virtual é o que é analógico; hoje em dia, cada vez mais, virtual é o que se vive na Internet. Virtuoso é aquele ou aquela que, pelas virtudes que possui, é uma pessoa casta, honesta caritativa; se for um remédio virtuoso, é porque é eficaz; e no campo da música, um virtuoso é um músico de grande talento.

Então, porquê a pergunta? Com a proliferação das redes sociais, que virtudes têm os contactos humanos estabelecidos e desenvolvidos no plano virtual versus o cara-a-cara? Porque no virtual não temos defeitos? Somos o que queremos ser, filtramos as nossas palavras (fora os erros, claro, que esses abundam na comunicação virtual) e comunicamos apenas o que temos de melhor e mais interessante? Somos virtualmente (igual a potencialmente) virtuosos ou virtuosos no virtual? Não sei. São virtuosidades que não domino.

Publicado no Açoriano Oriental a 7 Março 2010