23/12/2010

Aventura de Natal

“Depressa, depressa,

e não é preciso que se meça

a fita de enfeitar

ou o papel de embrulhar!”.

Era a voz do Pai Natal

que, num vermelho quase fatal,

comandava as brigadas

de gnomos, duendes e fadas

que na oficina labutavam

e os presentes embrulhavam,

carregando o seu lindo trenó,

(“cuidado, tens de fazer o nó!”)

que mais parecia um ovo

de tanto brinquedo novo

que lhe enchia as bancadas.

Era tudo às três pancadas!

“Para o ano, prometo,

que noutra assim não me meto:

devia ter começado em Agosto!”.

Mas quem corre por gosto

dizem as vozes que não se cansa

e, na verdade, sempre alcança

o fim a que se propôs.

Ou será que se contrapôs?

E no meio da confusão

ouviu-se a voz de trovão

de um gnomo minúsculo

(era tarde, já crepúsculo...)

que contra a tirania bradou

e no meio da oficina parou

sem mais um só dedo mexer:

“Não quero mais gnomo ser

nem que todos os meninos chorem

ou junto de mim implorem...

tudo o que quero é descansar

e no Natal não mais pensar!”.

De todas as caras de espanto

(todas e outro tanto!)

foi a do Pai Natal que se insuflou

– bem, quase rebentou –

pois tal nunca esperara

de quem tantos séculos trabalhara

correndo de fio a pavio

sem nunca abrir o pio.

Porquê isto agora?

Pois se esta era a pior hora!

Mas ser Pai Natal

é ser alguém muito especial

que a todos compreende

mesmo a quem não se entende

por ser tão pequenino,

quase do tamanho de um ratinho.

“Diz-me, filho, porque estás assim?

Diz-me, aqui, só a mim?”

E o gnomo, capuz à banda,

fez como o Pai Natal manda

e falou de sua justiça:

“Estou farto desta liça!

Todos os anos é trabalho... só...

e tudo o que quero é ir no trenó,

conhecer o mundo inteiro

e ser um aventureiro!”

Quem sempre cala nem sempre consente

pensou o Pai Natal, contente

por esta criatura tão pequena,

quase tão forte como uma rena,

ter sabido assim falar

do que andava a sonhar.

“Oh oh oh, pois será esta a minha prenda

e para que ninguém se arrependa

todos os anos vou levar

no meu trenó de voar

cada um de vocês,

cada um na sua vez!”

E assim ficou declarado

que nas vésperas do feriado

cada gnomo voaria

e muitas casas visitaria

para as prendas entregar

e as crianças fazer sonhar.

E se ninguém leva a mal...

a todos um bom Natal!

Maria das Mercês Pacheco

12/07/2010

PSSST!

Imagens dentro de caixas
Isto das novas tecnologias obriga a uma constante renovação da língua — e ainda bem! Pixel, scanner, bit, só para mencionar algumas mais em voga. Mas há coisas que não são assim tão novas. Como a palavra câmara, que tem uma imensidão de significados: aposento, conjunto de vereadores, assembleia de legisladores, o próprio edifício da dita assembleia, repartição de despachos da realeza, parte de uma arma de fogo, e até, em termos populares, uma cãibra. Ou aquela máquina que serve para registar imagens, paradas ou em movimento.
A sua história, ou o seu conceito, é tão antigo quanto a palavra grega «kamára», que significa ‘abóbada’, tendo passado pelo crivo do latim para se transformar em «camèra». Depois passou para as línguas modernas (não liguem ao salto histórico, não tenho caracteres que cheguem!) e entrou no português de duas maneiras — como ‘câmara’ e como ‘câmera’. O primeiro para designar todos os significados mais acima e o segundo… bem, o segundo é um anglicismo. E é escusado. Apesar de estar dicionarizado, está em demasia e nem sequer dá muito jeito, pois aposto que há-de criar mais confusão do que clareza.
O facto é que a ‘câmara’ levanta celeuma. Mexe com os ânimos. Transforma o invisível em visível, mesmo o que, por vezes, não será muito interessante de ver. Experimentem apontar uma câmara a alguém e reparem no efeito: os olhos abrem-se (não de espanto ou sabedoria…), os lábios mexem-se, o rosto ilumina-se, a cabeça meneia-se. Plim! O milagre da máquina de filmar ou de fotografar acontece. Qual milagre do Divino, qual história. A câmara que mais resultado obtém é a das imagens.
Por falar nisso, não me posso esquecer de levar a minha. Boas férias!
Publicado no Açoriano Oriental a 12 Julho 2010

05/07/2010

PSSST!

Mais vale uma boa separação…
Não é perseguição; nem sequer mania! Mas retorno à questão do ‘a’ que teima em engalfinhar-se, em alturas impróprias, nas palavras que o subseguem. Teima… ou teimam por ele!
Se isto fosse um debate, de que lado se colocaria? ‘Aparte’ ou ‘à parte’? Para começar, lêem-se da mesma maneira, com o primeiro ‘a’ aberto; escrevem-se de forma ligeiramente diferente; não são a mesma coisa; e não tem de tomar partidos, pois ambos estão correctos. ‘Aparte’, como substantivo, significa um comentário, um esclarecimento, uma interrupção, uma confidência (em teatro, é uma fala de um actor em que este, envolvendo o público, finge estar a falar consigo próprio); ‘à parte’ é uma locução adverbial equivalente a ‘em separado’, ‘em particular’ ou ‘excepto’. “Àparte” não existe, por mais que alguns bem-intencionados poupadores de espaços entre palavras insistam…
À parte toda esta confusão, acrescentemos ‘afim’ e ‘a fim’ à lista dos ‘a’ teimosos. Vê alguma diferença? Tal como no caso anterior, têm leitura igual, grafia semelhante mas não são, nem nunca foram, a mesma coisa. ‘Afim’ é um substantivo e um adjectivo, e designa que se tem afinidade ou parentesco, que se é próximo ou semelhante; ‘a fim’, que nas suas versões correctas e completas deve ser ‘a fim de’ ou ‘a fim de que’, é, novamente, uma locução e revela intenção, propósito, como em ‘para que’, ‘com o fim de’. No Brasil, estar ‘a fim de’ é demonstração de interesse por alguma coisa ou alguém (do que se depreende das novelas, grandes «educadoras» do povo, será mais por alguém do que por alguma coisa), isto num registo informal tropical e acalorado, claro.
Publicado no Açoriano Oriental a 4 Julho 2010

28/06/2010

PSSST!


Sem empates
Esta é a coluna número 100. Ou a centésima coluna. Se eu quisesse dizer que esta era a cem coluna (sem coluna talvez fique um dia destes, se me falharem as ideias), já estaria a começar mal…
Ao longo de mais de 2 anos estive aqui afincadamente a escrevinhar sobre dislates, erros, enganos e desenganos da língua portuguesa. Que a culpa não é só dos falantes, a própria língua é dada a equívocos. Faz parte da sua (dela) riqueza.
Voltando ao 100. Não faço ideia se tenho razões para celebrar, os leitores decidirão. Há um endereço electrónico à vossa disposição. Podem eleger a coluna da vossa predilecção, podem eleger outros temas a abordar, podem até eleger a legibilidade do que escrevo, não podem é confundir uma coisa com a outra. Principalmente se se trabalhar na comunicação social. Se algo é legível é porque, das duas, uma: pode ser entendido, quer pela forma, quer pelo conteúdo; o contrário de legível é ilegível — com ‘i’. O mesmo ‘i’ (por vezes com o auxílio de mais letrinhas) que vira do avesso palavras como relevante/irrelevante, legal/ilegal, suportável/insuportável, possível/impossível e «ad infinitum».
Quanto à elegibilidade destas colunas, já é outro assunto. Isto é, se são merecedoras de serem eleitas seja para o que for, são elegíveis; o oposto é ser-se inelegível, característica muito pouco reconhecida nos dias que correm, mas fundamental.
Já que se fala de ilegibilidade/elegibilidade, ouvi num relato de futebol a expressão ‘empate parcial’. Que deve ser muito mais difícil do que um empate, pois a parcialidade de algo que é absoluto nem chega aos calcanhares da cisão do átomo. Um empate é a igualdade de votos ou de resultados. Se não é igual, não há empate. E se não empata, é porque despacha assunto…


Publicado no Açoriano Oriental a 27 Junho 2010

21/06/2010

PSSST!

‘Invencionismos’
Se não fossem as palavras novas, o pessoal ainda comunicaria por grunhidos (bem, muitas pessoas ainda grunhem, ou dão respostas monossilábicas, para se ser mais chique). Donde se conclui que palavras novas — ou neologismos — nada temos contra. Desde que, claro, venham suprir uma necessidade, preencher um hiato, enriquecer o léxico.
Depois há as outras. As desnecessárias. Ou as hilariantes. Muitas vezes coincidem.
Uma das minhas preferidas foi “devagarmente”, ouvida, se não me engano, na televisão. Um advérbio ao quadrado, portanto, pois ‘devagar’ já é um advérbio (cuja nobre função é, em traços largos, modificar os verbos, os adjectivos e outros advérbios) que aqui sofre o acréscimo do –mente, o sufixo natural de muitos advérbios de modo. Desnecessariamente, claramente. Terá sido por uma espécie de contágio do ‘lentamente’? Ele fala devagar + ele fala lentamente = ele fala “devagarmente”. Assim não restam dúvidas sobre a lentidão da criatura. Ou será que, para além de ser uma coisa vagarosa, era também uma coisa vaga? Vagamente?
“Inventamento” foi mais uma das outras. E complicada. Porque não sabemos se vem de ‘inventar’ ou se vem de ‘inventariar’. Quer dizer, vem de nenhuma, pois a ‘inventar’ corresponde o substantivo ‘invenção’, e a ‘inventariar’ correspondem ‘inventariação’ ou ‘inventário’. Se quem tal inventou é um inventor ou um inventariante, também permanece um mistério.
Gosto de palavras novas. Se assim não fosse, como designaríamos aquela corneta comprida, com som estrondosamente forte, popular entre os adeptos do futebol na África do Sul? Corneta comprida com som estrondosamente forte? Ou vuvuzela? Hein? O quê? Acho que fiquei surda….

Publicado no Açoriano Oriental a 20 Junho 2010

14/06/2010

PSSST!


Cantigas de amigo
Se calhar é porque somos possessivos. E temos muito brio naquilo que temos. É nosso e ponto final.
Se temos brio no que fazemos, já será outra cantilena…
Uma expressão que ouço muito (e talvez use) debita, tal qual, o seguinte: «tenho uma amiga minha» ou «tenho um amigo meu» (não sou sexista). Ter amigos é bom. Quer dizer, ter não temos. Não no sentido de posse. Como se tem pares de sapatos, cêntimos no bolso ou, até, vuvuzelas. Mas temos, no sentido de podermos contar mutuamente uns com os outros… e de podermos contá-los — se for no Hi5 ou no Facebook, dispensa-se qualquer capacidade matemática, aquilo faz tudo sozinho. Portanto, fica então assente que temos amigos. ‘Tenho um amigo’ ou ‘uma amiga minha’ já será suficiente. Se os temos, porque vamos ainda acrescentar que são nossos? Na mesma oração? Tão pertinho assim? Eu tenho = é meu. Será por uma questão de boa vizinhança, para que não tenhamos dúvidas (também se podem ter dúvidas, portanto nem tudo o que se tem é material ou faz barulho ensurdecedor)? É porque somos possessivos? Ou porque somos redundantes?!?
A redundância é um mecanismo muito traiçoeiro. Faz-nos ‘subir para cima’ e ‘descer para baixo’ vezes sem conta. Ou criar ‘elos de ligação’ complicados. Da redundância para a contradição é um pulinho. O que dizer da fantástica expressão ‘estar muito mal enganado’? Dizer-se que fulana foi ‘bem enganada’ (sorrisito matreiro) é perfeitamente aceitável. Mas ser-se enganado e estar-se enganado são circunstâncias que podem, ou não, coincidir. Se uma pessoa está ‘muito mal enganada’, caiu em redundância ou está completamente certa. Desde que não caia no esquecimento!


Publicado no Açoriano Oriental a 13 Junho 2010

07/06/2010

PSSST!


Parece que há uma ilha aqui
Parece uma vírgula mas não é (na verdade, é tão maltratada pelos portugueses como a própria da vírgula, que passa a vida a ser colocada nos locais mais impróprios…) e o seu lugar é por baixo do C que precede A, O, U. Apenas nestes casos, nada mais. Mas aqui é que está o busílis: não sei se por uma questão de conflito de personalidade da cedilha que, havendo perdido o norte, alapou e não mais largou outros C que dela não precisam; se por causa de alguma disfunção que impele o falante-“escrevinhante” a cecear incessantemente, intensificando desnecessariamente o som de sibilante do ‘cê cedilhado’ até ao cicio absoluto; se por ignorância. Não sei, até pode haver mais razões…
A cedilha é um sinal gráfico ou um diacrítico que se coloca sob o C antes das vogais A, O, U para indicar que deve ter o som de S inicial, como ‘sino’, ‘selo’ ou ‘sorte malvada’. Nos casos de E, I a cedilha é desnecessária. Ouviram? Não é preciso, obrigada, deixe estar, é muito gentil da sua parte mas não é necessário, a sério…
A cedilha não é exclusiva à língua portuguesa, nem sequer teve origem no Português, e encontra-se em línguas como castelhano, catalão, francês, albanês, letão, romeno ou turco — e em qualquer língua que tenha herdado fonemas das outras, como em inglês se usa «façade» para fachada, importado directamente do francês.
A çedilha deve ser usada com parçimónia e não apareçer desneçessariamente por aí, por çenas que não são dela. Estranho, não é? Então, já sabem, em caso de E, I cedilha fora vezes nada. E se há uma ilha em cedilha, respeitem as coordenadas geográficas e rodeiem-na de A, O, U por todos os lados. Ou pelo lado certo…


Publicado no Açoriano Oriental a 6 Junho 2010

30/05/2010

15 anos do "Terra Nostra"

Este é o texto que criei, com imenso orgulho, para a edição especial dos 15 anos do jornal "Terra Nostra", fazendo assim parte de um vasto leque de colaboradores.



O Papel do “Terra Nostra”

Como se uma folha não soubesse o seu papel. Ser espelho dos humores da Natureza. Ser colagem de matizes em formas irregulares. Ser lembrete de liberdade na clausura de um livro. Ter o impulso do voo e a forma das nuvens. E desfalecer aos nossos pés no meio do caos citadino. Para que não nos esqueçamos de erguer o olhar. Mas ser apenas folha. De papel. Ser espectro de uma qualquer floresta-pulmão-verde. Ser do todo uma parte incontornável. Ter na face o poder de a face volver. E desaparecer amarfanhada no canto de um cesto irado. Mas ser apenas e sempre papel. E numa só folha ser conto, aguarela, poema, retrato, ficção, paisagem... ou ser este jornal.

Ao fim de 15 anos, o “Terra Nostra” tem um papel incontornável na nossa semana. Porque todas as semanas fala, preto no branco, do que nos aflige, nos alegra, nos emociona ou nos une. Simplesmente, o que nos une. Que será sempre mais do que o que nos separa.

Ao fim de 15 anos, o “Terra Nostra” faz-nos erguer o olhar para realidades que nos passam ao lado todos os dias, que nos circundam como o mar as ilhas mas que, mesmo assim, não vemos. Sem voltar a face ao que perturba a nossa sociedade, o “Terra Nostra” solidariza-se com quem realmente precisa de um abraço mais estreitado, de uma refeição mais fortificante, de uma palavra mais consistente. Porque a solidariedade social não é um acto, é uma atitude. Não é um papel, tem um papel.

Nestes seus 15 anos, ao “Terra Nostra” não importa qual a curva do seu gráfico de vendas, mas qual a marca que pode deixar na vida dos que nem sempre são lembrados.

Nestes últimos 15 anos, muitas foram as mudanças sociais, culturais e económicas; muitos foram os momentos de dor, desânimo e desvario. Mas também muitas foram as ocasiões para alegria, esperança e sucesso.

E partilha. Que é o papel que o “Terra Nostra” bem conhece. A partilha do que nos une. Na partilha do que nem sempre vemos.

Solidarizemo-nos, então, com este papel fundamental da não-indiferença. Pois ser do todo uma parte incontornável é ter o poder de a face não volver.

Muitos mais 15 anos, “Terra Nostra”, havemos de celebrar!

Maria das Mercês Pacheco

16/05/2010

PSSST!

Claustrofobia linguística

Se acha que realmente há falta de espaço na vida moderna, é capaz de ter toda a razão. A causa? Principalmente, por falta de discernimento. E de dedo. O primeiro para usar o segundo. Descodificando: espaço é o que faz falta entre algumas palavras e discernimento é o que é preciso para utilizar o dedo que deve pressionar a barra de espaço do teclado do computador (ou da máquina de escrever, aceitam-se métodos mais antiquados…).

A partir deste momento é que a coisa começa a interessar. Ou a partir desta linha, tanto faz. Pois ‘a partir de’ é uma locução prepositiva que significa ‘a principiar em’, podendo o ‘em’ ser um tempo ou um local: a partir da primeira fila de cadeiras ou a partir do dia 20. Aespaçopartirespaçode. Uma preposição de cada lado. E não “apartir” de, como tanta vez se vê. Conheço ‘apartar’, ‘apartamento’, ‘apartheid’ e ‘apartidário’; quanto ao último, pelo menos sei que existe no dicionário, mas não faço ideia se resta algum exemplar vivo. Ah, e ‘a partir de’ já inclui o ponto de partida.

A falta de espaço é igualmente notória em exemplos como “porcausa”, “derrepente”, “benvindo” e outros que consigam encontrar… sem esquecer as questões do ‘a fim’ vs ‘afim’ e do ‘à parte’ vs ‘aparte’, mas estes ficarão para uma próxima vez.

E se não tiver o ‘de’ depois do ‘a partir’, então o assunto é outro. ‘Estou a partir pedra’ ou ‘estou a partir o pão às fatias’ em nada se relacionam com a tal locução prepositiva, são apenas o verbo partir em conjugação perifrástica do infinito que, por cá, é caso raro e revezado pelo gerúndio: está chovendo!

A partir de agora o melhor é andar com uma barra de espaços na carteira…

Publicado no Açoriano Oriental a 16 Maio 2010

10/05/2010

Não há tascas como as do Senhor!

Porque as pessoas não vivem só de fé no Senhor Santo Cristo dos Milagres, há que alimentar o corpo. E já que esta é uma festa tipicamente açoriana – micaelense, de origem – nada como os petiscos da terra.

Comecemos pelo perímetro do Campo de São Francisco.

Por entre o rodopiar do carrossel, o “bum-tchibum” das filarmónicas e o troar dos altifalantes, aí, para entretenimento das crianças e desespero dos pais, abundam os galinhos de açúcar (em variantes multicolores), as batatas fritas estaladiças, as pipocas – antigas freirinhas brancas – os tremoços ou as nuvens de açúcar...

E que, nesses dias, se descartem as preocupações com uma dieta equilibrada ou se não pense na conta do dentista: três dias não são todos os dias!

Depois, quem sobe a Avenida Roberto Ivens, sob o tépido sol de Maio, é logo inundado pelos aromas do polvo guisado, dos torresmos torriscadinhos, das febras grelhadas, das iscas de fígado em abundante molho ou do fiel bife de vaca com generosas tiras de pimenta. Aliás, pimenta é sabor que nunca falta nos acepipes micaelenses, como se pode comprovar pelo ar cerradamente rubro dos tradicionais caranguejos do Senhor Santo Cristo.

Se a fome for pouca, há sempre os petiscos, que vão desde os humildes tremoços até ao regional chouriço, passando pelo inhame ou batata inglesa com massa de pimenta, os ovos de codorniz mergulhados em vinagre, as favas tenras ou a morcela reluzente. Para aconchegar bem o estômago, aconselha- -se o pão de milho, broa de devoção, ou o pão caseiro (se lhe propuserem uns papo-secos tresmalhados, faça ar de ofensa e mande de volta... ) para quem não perde pitada de um molhinho denso de sabor.

E se quiser uma solução de compromisso – conceito muito em voga – pode sempre recorrer ao prego ou à bifana no pão. Aí, o papo-seco é obrigatório.

Para regar, o vinho ou a cerveja, abundantemente consumidos – não desse tanta pimenta uma sede descomunal! E nem importa se o gosto fresco da cerveja se mistura com o travo a plástico dos copos; importa é o refrigério e a alegria de partilhar uma “loura” no meio da turba que não pára de passar. Aos teatotallers, resta sempre a Laranjada (quem não tem, da sua infância, memórias das bolhinhas de Laranjada a invadirem o céu da boca? – outros falariam do pirolito, mas isso já é jurássico!).

Como sobremesa, sem excepção, o gelado. Sucesso garantido, há p’ra menina e p’ro menino, é só descascar.

O cenário assemelha-se se, ao invés da Avenida, formos para os lados do Forte de São Brás, seguindo a maré do povo que visita a Feira... com a diferença que aí reinam as tasquinhas dos jovens finalistas de curso (com algumas comidas confeccionadas pelas suas diligentes mamãs) ou as de menus exóticos de países longínquos; se, ao degustar uma muamba ou uma cachupa, fechar bem os olhos, até acredita que mudou de latitude.

Se o objectivo é uma escolha mais formal (que isto das tascas tem muito que ver com a capacidade de uma pessoa aguentar-se de pé!), os restaurantes da cidade, próximos ou não do Campo de São Francisco, aderem em massa ao frenesi da altura; resultado, não há um espaço onde se possa digerir pacatamente uma refeição qualquer sem se ser invadido por visitantes ou peregrinos famintos de comida e consolados de fé. As ementas, bem, não variam muito das do resto do ano, mas que importa, são as Festas.

Contabilizando: entre balões e gelados para os miúdos, petiscos para o grupo, desenrolar de rifas e o apelo dos bazares, se calhar o gasto chegava para um plácido fim-de-semana no Hotel das Furnas, cozido incluído.

Mas, diga-se o que disser, não há nada como a excitação de percorrer as tasquinhas, os recantos, as barraquinhas e os tabuleiros da festa do Senhor. Pois o arraial é tradição bem portuguesa e se conseguirem encontrar uma só festa religiosa sem petiscos, eu arrumo a caneta e rendo-me às evidências.

Maria das Mercês Pacheco

(texto publicado há 500.000 anos numa revista apelidada 'Vidas', edição única)

PSSST!

(des)encontrão

E com esta vão três. Não é por senilidade ou falta de assunto, não senhores. É mesmo por revolta. Ou por cansaço. Pode também ser pela dor aguda que nasce dos tantos, imensos, tremendos encontrões que por aí andam. Ainda hoje assisti, pelo menos, a dois, via rádio.

Peço (e hoje é um bom dia para pedidos miraculosos), imploro a todos que sintam um impulso inevitável para proferirem as expressões ‘ao encontro de’ e ‘de encontro a’ que reflictam um pouco antes de o fazerem. Principalmente se tiverem um qualquer papel de liderança. Não lhes fica bem andarem por aí aos encontrões — um líder deve ser uma pessoa tranquila, concentrada nos seus afazeres, consciente das suas responsabilidades —, tropeçando nas suas próprias palavras em plena comunicação social.

Apanhar um encontrão aqui e acolá, vá, acontece. «Ai, desculpe, não o vi!»… Mas da maneira que as coisas andam actualmente, tanto encontrão só pode ter resultado maléfico. Epifania! Será por causa da confusão entre ir ‘ao encontro de’ e ir ‘de encontro a’ (sendo o primeiro sinónimo de concordância, e o segundo um banal e miserável encontrão) que o mundo se encontra da forma que está? Será? Adoraria que fosse, estaria tudo resolvido num instante! Bastaria obrigar todos os ‘desencontrados’ da língua portuguesa, os que repetidamente sugerem encontrões ao invés de concordância, repito, obrigá-los todos a pegar numa gramática, num dicionário, num caderninho de linhas (até poderia ser virtual, de portátil em punho) e estudar de novo. De volta à primeira classe! Que sonho bonito!

Despeço-me, pois vou agora para o Campo de São Francisco evitar ser abalroada pela multidão…

Publicado no Açoriano Oriental a 9 Maio 2010

03/05/2010

PSSST!


Fugir a língua para a (in)verdade


Bráctea. Sarrafo. Água-mestra. Fadegénico. Cominar. O que têm estas cinco palavras em comum? Nada. Bem, não é verdade, pois algo as une: pertencem a gírias de profissões, como engenharia civil ou medicina. E se nos dias de hoje há bastante contaminação entre gírias e se é comum encontrarmos palavras específicas num vocabulário generalizado, convém empregá-las sabendo — no mínimo! — o significado e uso das ditas.
Se eu decidir usar ‘fadegénico’, daria jeito saber que é um termo da medicina e que (iuc!) tem a ver com tecidos ulcerados. Posso também impressionar o pessoal, claro, e dizer que fulano é um enorme fadegénico, à guisa de insulto; ficava com um ar muito intelectual, quase erudito, mas mesmo assim não seria compreendida. O que não tem importância alguma, desde que me desse ares de entendida. Não sei se seria cominada pela situação (eu ajudo: ameaçada com pena ou castigo), mas espero bem que não…
O estudo da língua portuguesa também tem a sua gíria; ou jargão. Agradece-se o uso, desde que apropriado. Exemplo simples: pleonasmo. Ou redundância, ou repetição desnecessária, ou superabundância. Acabei de escrever um pleonasmo, mas o meu foi uma figura de estilo, feita de propósito, para reforçar a minha mensagem! Outro exemplo simples: eufemismo. Que é uma figura de linguagem usada para suavizar uma noção desagradável. Se eu disser que algo é uma ‘inverdade’, estou a usar um eufemismo, ou seja, estou a dizer que é uma mentira mas de forma suave (e mais rebuscada…); que sicrano é um amigo do alheio, em vez de ladrão; que o dinheiro não estica, ao invés de… ah, mas esperem, isso não é um eufemismo, é a realidade!

Publicado no Açoriano Oriental a 2 Maio 2010

26/04/2010

PSSST!


A autonomia do U
A letrinha que hoje me levanta dúvidas é o Q. Que, na verdade, não é gente de corpo inteiro se não levar o U. Pensando melhor, o busílis da questão até não é o Q, mas sim o U que forçosamente o acompanha, suporta e justifica. Se o U é surdo ou sonoro, esquecido ou pronunciado, essa é que é a questão (kestão).
As regras dizem que as vogais ‘e’ + ‘i’ não necessitam do U sonoro. Entra mudo e sai calado. Ou não, pois existem — abundam! — excepções, apenas e só para contrariar a regra. Sequela (…kwé…). Tranquilo (…kwi…). Consequência (…kwên…). Cinquenta (…kwen…). E até há exemplos em que se lê duas vezes o U: quinquagésimo (kwinkwa…) ou quinquecelular (kwinkwé…). Um exercício vocal algo cómico, convenhamos, mas perfeitamente legítimo. Obrigatório, até!
No português de tempos idos, existia um utilíssimo trema (¨) que indicava aos falantes a indispensável leitura do U. Caiu, como já caíram tantas outras coisas por via da evolução linguística (…gwí…). Mas que dava jeito, isso dava. Nem que fosse para não se confundirem certas palavras. Que, em primeiro lugar, não deveriam ser confundidas, pois a letra ‘a’ depois de QU obriga à leitura do U: quatro, quarenta (mas não catorze), quamanho, quaisquer, qualidade. Mas, e se a diferença for apenas a leitura desse U? Como em quartel e cartel. Apesar de cartel também significar um escrito provocatório ou um cartaz, é do sentido de coligação ou monopólio que nos lembramos logo. Quartel, entre muitos significados, é um período de 25 anos, são alojamentos militares ou um paradeiro. O cartel do quartel? Um quartel sem cartel (sem tréguas)? Um quartel do primeiro quartel do séc. XVI? Enfim, pode não parecer, mas estas não são coisas de quiqueriqui…


Publicado no Açoriano Oriental a 25 Abril 2010

18/04/2010

PSSST!

As palavras (mal)ditas

Nem sei se já falei deste assunto; às tantas, já me repito. Mas, ao fim de dois anos, creio que não preciso de me desculpar perante vós, caros leitores, se acontecer repetir-me.

A questão é a da oralidade versus a escrita. Por favor leia as seguintes palavras com a velocidade normal do registo informal: privilégio — diferente — definitivo. O que é que lhe saiu? Qualquer coisa como «previlégio» — «deferente» — «defenitivo»? Não se martirize, é perfeitamente natural. Tão natural quanto, por cá, se ouvir mesmo «previlége» ou «defenitive». Apesar de erradas, as verbalizações ainda escapam; o que não escapa é ter-se este tipo de incorrecção escarrapachada em folhetos publicitários ou cartazes gigantescos. Porque o pessoal começa a pensar que até está certo (e se aqueles senhores puseram aquilo por escrito na publicidade é porque está certo, não é?) e adere logo.

E se tiver de distinguir (olhem, mais um: «destinguir») entre diferir e deferir? Ditos depressa soam ao mesmo. Mas não são. Diferir é adiar ou discordar; deferir é conceder, outorgar. Difiro, portanto, que se confundam.

Tal como podem confundir-se o diferente com o deferente. O primeiro, dito depressa, soa ao segundo, sem qualquer deferência para a diferença que os separa. É deferente quem é atencioso, condescendente; diferente é aquilo que não é igual, que é distinto e diverso. Cá por mim podemos ser todos um pouco mais deferentes e diferentes, desde que não discriminemos quem o não é.

E é com a devida deferência que deixo aqui a minha vénia aos 175 (vá, todos em coro a recitar o ordinal: centésimo septuagésimo quinto!) anos do Açoriano Oriental!

Publicado no Açoriano Oriental a 18 Abril 2010

12/04/2010

PSSST!

Isto não é um peixe
Se existem novas formas para comunicarmos — Twitter, Facebook, MySpace, Badoo, Hi5, só para nomear alguns — então também existem novas formas para disparatarmos. Tirando os erros de simpatia, os dedos desastrados ou a digitação supersónica, há aqui um vastíssimo campo para exploração linguística. E humorística.
Uma dessas preciosidades foi a palavra “pelágio”. Que era (imagino que por digitação desajeitada…) para ser ‘plágio’. Mas que acabou por ser um mergulho de chapa. Pois pelágico relaciona-se com o mar, em traços muito largos. É claro que um plágio pode ser algo de tão profundo e vasto (profundamente aviltante? vastamente desrespeitoso?) que acaba por se transformar, metaforicamente, num acto pelágico. ‘Plágio’, que na origem está associado às noções de rapto ou obliquidade, significa copiar ou imitar de forma fraudulenta, sem respeito pelos direitos de autor; um ‘plagiedro’, por exemplo, é um cristal com faces oblíquas; já ‘pelágico’ usa-se para designar o que é oceânico, ou os peixes de profundidade; ‘pelágia’ é uma espécie de alforreca; ‘pelagiano’ tanto pode ser uma variante do adjectivo pelágico como um simpático albatroz; e, só para confundir, ‘plagióstomo’ é uma mistura dos dois — uma ordem de peixes, só que de boca oblíqua (como as raias)! Mais ‘e’, menos ‘e’…
Se confundir era o objectivo então o emprego da palavra “homolgado” em território automobilístico é um sucesso absoluto. É só fazer a ponte: carros = chapa, chapa = amolgado. Ou “homolgado”? Não. ‘Homologado’ era o termo certinho, mas que diacho, mais ‘h’ menos ‘h’, mais ‘a’ menos ‘o’, fica tudo como o peixe. Com a boca de lado.
Publicado no Açoriano Oriental a 11 Abril 2010

29/03/2010

PSSST!

Programação básica
Que fizeram este fim-de-semana? Coisas muito divertidas? Terá sido algo como um conjunto de actividades planeadas para um certo período de tempo? Portanto, um programa, não foi? Ou terá sido um “pograma”…?
Nem sei qual será o mais interessante — o programa ou o “pograma” — mas parece-me que, de acordo com o que ouço por aí dizer, há mais “pogramas” do que programas.
Desconheço a razão. Não será bem um caso de troca do ‘R’ pelo ‘L’, como o Cebolinha faria; nem será uma trapalhada ao estilo de Elmer Fudd, famosa personagem dos «Looney Tunes. Apesar disso, tanto na comunicação social como na vida real, o “pograma” impera e desespera. Será assim tão difícil dizer aquele ‘R’ a seguir ao ‘P’? Treinemos: prrr(língua enrolada)ograma. Aconselho repetição várias vezes ao dia.
A deslocação do ‘R’ é um fenómeno que tem assombrado a língua portuguesa ao longo dos tempos e não é assim tão incomum encontrar versões como “percisar” ou “promenor”. Inclusive já ouvi “treceira”. Apesar de erradas, até são mais compreensíveis, uma vez que o ‘R’ (como o ‘L’) é uma consoante líquida, devido ao modo de articulação.
Seguindo esta lógica, dever-se-ia então ouvir “porgrama”, não é? Mas não. O ‘R’ simplesmente desaparece. Puf! Vai para o mesmo sítio onde se escondem as meias desirmanadas, os carregadores de telemóvel ou os nossos impostos. E até a acentuação muda de lugar: em vez de se ler ‘prográma’, o som assemelha-se mais a “pôgrama”. Já só falta desaparecer o outro ‘R’. Nessa altura, sugiro que contratemos um Indiana Jones da língua portuguesa… ou das meias desirmanadas, dos carregadores de telemóvel e dos nossos impostos.

Publicado no Açoriano Oriental a 28 Março 2010

22/03/2010

PSSST!

Verde, código, verde
Vinda de uma ida ao mercado, pus-me a pensar no quanto a nossa vida «comercial» mudou. Quando digo nossa refiro-me claramente à vida das pessoas que têm acesso a mais do que um modo de compras. E é aí que reside o busílis: ter acesso a mais que um modo de consumo é igual a mais qualidade de vida? Ou apenas a mais quantidade? Não sei se por alargarmos o leque de consumo estamos, na verdade, a prolongar, a acrescentar ou simplesmente a acumular…
Considerações filosóficas (das baratuchas, daquelas com cupões, promoções e descontos, apesar de não devolvermos o seu dinheiro se não ficar satisfeito com esta crónica!) à parte, já nos habituámos de tal forma aos prefixos ‘super’, ‘hiper’ e ‘mega’ que se não tivermos essa referência se calhar não reconheceremos o valor da coisa. O facto é que continuamos a mercanciar, mas fazemo-lo de forma sofisticada: não regateamos, sujeitamo-nos ao preço marcado; não trocamos bens, trocamos cartões e papelinhos; não escolhemos 5 cenouras suculentas, carregamos um saco de quilo; não compramos apenas o necessário, levamos também o acessório.
Obviamente que tudo isso tem vantagens, longe de mim negá-las ou sequer excluí-las, mas se na escala crescente de prefixos já galgámos até ao ‘mega’, tendo usufruído do ‘super’ e ‘hiper’ pelo caminho, que degrau vamos subir a seguir? Segundo a actual lógica de capacidade de armazenamento, será o ‘giga’. Depois disso virão o ‘tera’ e o ‘peta’, mas creio que nessa altura já haverá outros prefixos tão ou mais multiplicativos que o melhor é meter-me a caminho das compras antes que o meu ‘verde, código, verde’ expluda. Ou encolha…

Publicado no Açoriano Oriental a 21 Março 2010

15/03/2010

PSSST!

O que é um QI q.b.?
Qual é a coisa qual é ela que garantidamente recebemos de “bónus” quando compramos um aparelho electrónico? Ou uma peça de mobiliário do tipo monte-você-mesmo? O livro de instruções. Que, na verdade, é mais um presente envenenado do que um “bónus”. Daí as aspas. Entre os textos que se podem ler nesses livrinhos e os textos de, vá, uma sopa de pacote ou uma caixa de farinha para panquecas, prefiro os últimos. Sempre matam a fome.
Que tipo de inteligência é preciso ter para perceber livros de instruções? Um QI q.b. chegará ou será preciso ter uma inteligência artificial, tão artificial quanto a linguagem desses textos?
A inteligência lógico-matemática seria excelente, não fora o facto de haver pouco lógica e muitas palavrinhas. A inteligência linguística, claro, fundamental — afinal, trata-se de textos, mas tenho dúvidas de que seja suficiente. Inteligência espacial? Sim, boa ideia, principalmente se tiver de montar uma cadeira de acordo com o esquema apresentado. Nesse caso, recomendo a inteligência corporal-cinestésica, muito útil em casos de membros partidos e parafusos rolantes. Há sempre a hipótese da inteligência existencial, que permite ponderar longamente sobre a existência de instruções tão néscias. Por fim, para não desanimar, pode recorrer à inteligência emocional — aquela que permite que se mande o livro de instruções às urtigas e se passe a improvisar.
E livros de instruções para coisas realmente difíceis, há? Como a crise financeira, a cena política, a intolerância, impressos de impostos, a falta de piscas do condutor à nossa frente… e outros livros de instruções. Há desses?
Publicado no Açoriano Oriental a 14 Março 2010

07/03/2010

PSSST!

Potenciais desvirtudes

Há (há porque existem!) dias que ando a pensar na minha vida virtual. Apesar de — com enorme pena minha — não possuir um avatar que valha uns milhõezitos, a minha existência virtual acumula-se, desdobra-se e cruza-se com outras existências, igualmente virtuais, todos os dias. Não que ache que a minha existência virtual anda por aí a portar-se mal nas minhas costas (reais), nada disso, mas que demonstra uma espécie de emancipação púbere, lá isso demonstra.

A pergunta impõe-se: se virtual é antónimo de real, será que virtual é sinónimo de virtuoso?

Na verdade, não. Tanto na origem como no significado, virtual e virtuoso — e todos os vocábulos relacionados — não são nem sinónimos nem semelhantes. Virtual é o que existe em potencial, o que é possível; virtual é o que é analógico; hoje em dia, cada vez mais, virtual é o que se vive na Internet. Virtuoso é aquele ou aquela que, pelas virtudes que possui, é uma pessoa casta, honesta caritativa; se for um remédio virtuoso, é porque é eficaz; e no campo da música, um virtuoso é um músico de grande talento.

Então, porquê a pergunta? Com a proliferação das redes sociais, que virtudes têm os contactos humanos estabelecidos e desenvolvidos no plano virtual versus o cara-a-cara? Porque no virtual não temos defeitos? Somos o que queremos ser, filtramos as nossas palavras (fora os erros, claro, que esses abundam na comunicação virtual) e comunicamos apenas o que temos de melhor e mais interessante? Somos virtualmente (igual a potencialmente) virtuosos ou virtuosos no virtual? Não sei. São virtuosidades que não domino.

Publicado no Açoriano Oriental a 7 Março 2010

28/02/2010

PSSST!

Falta de ar

Quer emagrecer? Quer muito? Sim? Então expire essas banhinhas tão incómodas e fica o assunto resolvido num ápice. Exacto — expire, mas tenha o cuidado de não inspirar, podem as ditas regressar…

É que nem de propósito! Ainda há duas semanas se falou no assunto, mas do ponto de vista da confusão entre ‘es’ e ‘ex’ (cujo som se assemelha a ‘eis’, lembram-se?) no início de algumas palavras. Pelos vistos a coisa não se fica por aí, pois à balbúrdia também se podem acrescentar algumas palavras iniciadas por ‘as’: como aspirar. Que tem um som muito semelhante ao de expirar, nisso tenho de dar a mão à palmatória. E provavelmente (apesar de isso me parecer verdadeiramente extraordinário) ao de inspirar.

Não deixem de expirar e inspirar, por favor. Ar para fora, ar para dentro. Creio que não há dúvida de quão indispensáveis essas acções são… mesmo quando não se aplicam apenas à respiração! Se não se preocupa com o que inspira, dê atenção ao que o inspira — a sua inspiração pode ser tão importante quanto o ar que respira, mesmo sem data marcada de validade ou expiração.

Quanto a aspirar, tudo depende do que se aspira; ou ao que se aspira. Portanto, se for retirar as tais banhinhas em demasia para ficar magríssimo (ou macérrimo, que é muito mais chique e indicado para quem realmente se preocupa com a imagem), vai fazer uma lipoaspiração. ‘As’. O método é da sua escolha. Se a sua preocupação é a limpeza doméstica, também pode aspirar, entre outras tarefas igualmente exultantes. Mas não se fique por aí, aspire a mais, aspire a melhor, aspire a maior! Dê largas às suas aspirações! E inspire-se. Nunca se sabe que tipo de ar pode passar a respirar.

Publicado no Açoriano Oriental a 28 Fev. 2010

22/02/2010

PSSST!

(contra)diz-se…
Estaremos a viver uma nova era da nossa civilização? Os acordos (os do ‘ô’ fechado…) são cada vez mais difíceis, as opiniões mais contrárias e as notícias mais contraditórias. Será esta a verdadeira era do ‘contra’? E ser-se do contra, será ser-se a favor de quê?
Na legenda de uma notícia, na televisão, surgia há tempos a palavra ‘contrafeito’, do verbo contrafazer. Lembrei-me logo do outro ‘contrafeito’, o de contrariado. Será que um contagiou o outro? Se contrafeito significa falsificado, mas também constrangido ou forçado, quer dizer que uma coisa falsificada é falsificada a contragosto? Que quem pratica a contrafacção, fá-lo contrafeito, mas mesmo assim fá-lo porque a vida está difícil e há que pagar contas? Não imagino que seja o consumidor que, contrafeito, compra um artigo de contrafacção, pois se tivesse de pagar o original não compraria. Bem, se calhar o maior contra é não haver orçamento para comprar o apenas-feito. Contra-senso.
Seguindo o labirinto da polissemia, descobri que ‘contrafeito’ também pode ser um substantivo ali da área da construção civil (uma viga que suaviza um telhado inclinado, basicamente), trabalhos que ignoro pois todos os meus castelos são de nuvens; ‘contrafazer’ não se limita a ‘imitar’ ou ‘falsificar’, sobe de tom e quase grita quando atinge o ‘reprimir-se’ ou ‘violentar-se’; e que ‘contras’ há muitos e muito curiosos!
O facto é que isto de ser-se do contra pode levar a várias interrogações. Por exemplo: se as opiniões forem todas contrárias umas às outras, anular-se-ão? Provavelmente, por mais contranitência que haja.

Publicado no Açoriano Oriental a 21 Fev. 10

15/02/2010

EX
Que fazer hoje, Dia de Namorados? Sugestões íntimas à parte, podem os apaixonados ir a um “expectáculo”. Que deve ser assim uma espécie de espectáculo externo… o externo exterior, não o do esterno interior. Ou, então, um evento tão, tão extraordinário, que merece o X de espectacular que é!
A verdade é que o X também não facilita: o som tanto pode confundir-se com um CH, como parecer-se com um S ou fazer-se passar por um Z. Sem falar na possibilidade da letra ser também um 10, o símbolo da incógnita matemática ou indicar o local do tesouro. Ora, que de tanta diversidade se chegue ao exagero de se escrever “expectáculo”, bem, só se for como partida de Carnaval. Um verdadeiro assalto à língua portuguesa, só que sem comes e bebes, e com mascarilha à Zorro.
A diferença é simples: se a palavra começar com o som «eis» é porque leva o X. Como ‘explicar’, ‘extravagante’ ou ‘externo’. Já ‘esterno’, ‘especial’, ‘estranho’ não soam a «eis» nem se escrevem ‘ex’ (como em ex-marido, ou seja, aquele que deixa de ser o que era, perdoem-me os namorados!). Basta fazerem o teste e lerem as palavras em voz alta, que ninguém há-de levar a mal, se calhar nem ouvem. Ou escutam. Acrescento que escutar também não é com X, embora encaixe perfeitamente na categoria do extraordinário (com ponto de exclamação!). Mas escutar não é ouvir, apesar de serem verbos aparentemente intermutáveis, mas não exclusivos um do outro. Quem ouve escutará? E quem escuta, ouve-se… ou ficará a sofrer de alguma surdez temporária? Desde que uma pessoa consiga expressar-se, isso é que conta, claro!
Publicado no Açoriano Oriental a 14 Fev. 2010

08/02/2010

PSSST!

Uma caixa com coisas lá dentro
Tudo isto por causa do mar.
Passo a explicar: ao rever uns textos, fiquei na dúvida se a palavra em causa levava hífen ou não… isto sem falar na dúvida se levaria o tal hífen na versão pré- ou pós-acordo ortográfico, apenas na primeira, se nunca levou de todo, ou se esta confusão já seria sintoma — tão usual quanto espirros no Inverno — do novo despotismo linguístico. Sem mais devaneios: fui parar aos substantivos (ou nomes, como sói agora dizer-se) colectivos; ou seja, é como uma só caixa onde posso arrumar muitas coisas da mesma espécie. Independentemente do tamanho, claro. Bem, acho que vou ter de rever esta última frase, pois se o tamanho e a quantidade não contam no caso dos nomes colectivos, então como posso escolher a caixa de que vou precisar? Por exemplo (e isto é mesmo um exemplo «ad hoc», completamente espontâneo), um arquipélago: se for um arquipélago de 9 ilhas (pura coincidência) será que é mais arquipélago do que um arquipélago de 2 ilhas apenas? Devo acrescentar que os livros não ajudam: dizem apenas que um arquipélago é um grupo de ilhas vizinhas umas das outras. Grande achega! Não há quórum aqui, mínimos de participação? Cá para mim, acho que será mais arquipélago por ter tantas ilhas; parece-me mais verídico, soa melhor, tem mais ilhas… portanto, acho que merece mais o prefixo arqui- (que indica superioridade, preeminência). Mas não deixa de ser um arquipélago, claro, como todos os outros. Uma caixa com coisas da mesma espécie lá dentro. Só que maior. E com mais coisas. E mais espaço à volta. Mas porque é que me lembrei disto? Ah, já sei, foi por causa do mar. É que pélago vem do grego e significa mar alto. E também abismo, profundidade, imensidade.

Publicado no Açoriano Oriental a 7 Fev. 10

01/02/2010

PSSST!

Que profundo!
Há palavras de que gosto imenso. Por razões diversas, e nada racionais, há palavras cuja sonoridade me cai direitinha no goto.
Gargantuesco. Verrinoso. Quiçá. Petrificado. Ameba. Quixotesco. Atroz. Abissal. Mnemónica. Oscular. Clarabóia… e muitas outras, igualmente ou ainda mais apelativas.
É com ‘abissal’ que me surge a dúvida: será abissal ou abismal? Quer dizer, as duas formas existem e coabitam, mas quando empregar qual? Que profundidades medem? Consultados os devidos especialistas, concluo que ambas se referem a abismos, mas um nadinha diferentes. Abissal é mais correcto se se restringir às profundezas geográficas, incluindo as do mar oceano; abismal fica melhor se for para adjectivar todas as profundezas — do coração, da alma, de opinião, as sociopolíticas… e também as marítimas. Portanto, abissal é mais científico e abismal mais metafórico. Abismal tem origem no latim ‘abismu’, uma evolução de ‘abyssu’; abissal nasce directamente do segundo que, por sua vez, é também a raiz de ‘abisso’, um sinónimo de abismo mas apenas no sentido de tremenda profundidade tormentosa e inatingível. E há também o verbo abismar e o adjectivo abismado, com múltiplas e úteis aplicações, seja para se precipitar no abismo ou para ficar assombrado.
Pelo que percebi, abismos há muitos e variados: do oceano, do inferno (aquele para onde vão todos os que dizem “há-des” em vez de ‘hás-de’, para fazerem alegre companhia ao famigerado deus grego) ou os da alma. Quanto aos últimos, não me manifesto, cada um conhecerá os seus. Só posso acrescentar que se forem do tipo abissólito, a situação complica-se…
Publicado no Açoriano Oriental a 31 Jan. 2010

25/01/2010

PSSST!

Quem me empresta um ‘lápi’ de cor?
O povo português é realmente muito criativo! Agarra em palavras de outras línguas, dá um abanãozito, uns pozinhos de perlimpimpim e… já está! Uma palavrita nova! Apesar de gostar imenso de palavras novas, sim senhor, as regras que regem algumas é que… não senhor! Sandes e ténis são disso exemplo. «Tennis» nasce do latim «tenir» e percorre um longo caminho pelo antigo francês, anglo-normando e inglês médio até chegar aos dias de hoje; «sandwich» é uma criação de John Montagu, quarto duque de Sandwich, criatura esperta que preferia comer pão com coisas lá dentro do que sair da mesa do jogo.
No original, sandes e ténis terminam em sons sibilantes. Que se parecem com plural, mas que não são. Não são e não se deixem enganar. Em português, pelo que percebi, há novos singulares de palavras que nunca foram apenas plurais. Portanto, posso dizer, de acordo com a «vox populi», que o ‘téni’ do pé direito aperta mais os calos do que o ‘téni’ do pé esquerdo; não posso é dizer que aquela loja tem um ‘téni’ fantástico pois, que eu saiba, ainda se vendem aos pares; e quando me referir ao jogo em si, só posso dizer ténis se forem dois ou mais? Dúvidas terríveis…
Ah, e se há som que os meus lábios nunca irão proferir é ‘sande’, mesmo sendo aceite pelo dicionário, mesmo recheadinha do mais fino caviar. Eu como uma sanduíche, uma sandes, mas nunca uma ‘sande’.
E como lidamos com outras palavras que terminam em –s que não plural? ‘Lápi’? ‘Víru’? Um lápi de cor, pois claro, ou o terrível ‘víru’ da gripe, o ‘pire’ da chávena ou o ‘oási’ no deserto. E mais haverá. Nem é preciso pensar muito.
Safa. Ensandeceram?

Publicado no Açoriano Oriental de 24 Jan. 2010

18/01/2010

PSSST!

Às canadas!
Isto é que tem sido um Inverno! E apesar de (segundo informações privilegiadas que me foram facultadas directamente por especialistas em meteorologia) estatisticamente não fugir à média, a chuva tem caído em bátegas, o nevoeiro tem estado cerrado e o vento soprado com força. Com tanta força que já não sei se bastará apenas dizer ‘vento encanado’ ou se deveríamos pensar em outros tipos de vento — vento encanudado, vento encadeado, vento encanastrado… Acorrentado não é de certeza! Para quem não conheça a expressão, ‘vento encanado’ é intrigantemente sublime. Vento quê? «Vent’incanáde». Já todos nós passámos por esse tipo de situação, quando as palavras que nos são reais e próximas representam um enigma para outrem. E é aqui que preciso da vossa ajuda, pois não tenho a certeza da origem da expressão: encanado como estando dentro de canos? Encanado porque soprava forte por meio das nossas estreitas canadas? Encanado porque é como se fosse às canadas, antiga medida equivalente a 4 quartilhos (é capaz de esta referência a quartilho, por cá geralmente de vinho, complicar ainda mais o assunto)? Ou porque era como se fossem vergastadas com canas, logo canadas? Não faço ideia. Mas que é às canadas, meus caros, às canadas, lá isso é. E de tal maneira que as roupas no varal balançam que nem «arredouças».
Muitas outras expressões regionais do foro meteorológico poderiam ser aqui exploradas. Falham-me a memória e a sabedoria. Deixo um conselho: para fugir ao vento encanado, que por aí sopra de tantos quadrantes, fiquem em casa a deliciarem-se com uma «carnina» com «arrojinho» malandro. Boa «semanina»!

Publicado no Açoriano Oriental a 17 Jan 2010

16/01/2010

Contos a Rimar IV


Trilogia Medieval

III. Do Ponto de Vista da Dama

Se do terrível dragão já falámos

e o valente cavaleiro já retratámos

– ambos entrincheirados numa luta desigual –

só nos resta a bela dama medieval,

D. Inês de sua mui bela graça,

mulher de porte alto e olhos de garça,

dama de um castelo alcandorado

numa colina junto a um lindo prado,

objecto de graciosa paixão

(quantas vezes lhe pediram a mão!)

de reluzentes cavaleiros na sua mocidade.

Não é que tenha agora muita idade...

é, sim, uma determinada senhora

que da paciência fez penhora

para governar a sua torre de Babel

e os humores do seu D. Rangel.

Isto sem falar no tal dragão

que todos os dias fazia tradição

de pelejar com o seu amado

– das 9 às 11 da manhã, o seu fado

era correr, ansiosa, para as ameias,

o sangue batendo veloz nas veias,

e esperar pelo fim do enredo

que não era nenhum segredo

pois D. Rangel vitorioso voltava

e, caindo no cadeirão, suspirava:

“Quase o matei desta vez!”.

Revirava os olhos D. Inês,

cansada de tanta repetição.

Por isso, quando o dragão

farto da peleja, avançou

e o seu amor declarou,

a nossa dama, mulher audaz,

logo aproveitou para fazer a paz

e uma boa amizade começar:

“Que importa se ele não tem o ar

imposto pelos demais?”;

logo com questões tais

D. Rangel concordou

e do seu cadeirão fundo suspirou.

Que isto de se viver uns com os outros

requer cuidados doutos

e se uma mulher assim quer –

pois quem disse que não pode ter?


Maria das Mercês Pacheco