27/12/2009

PSSST!

Bem visto!

Chegado o fim do ano, toca a contabilizar os azares e as venturas, quais gafes do ano e de quem, as imagens de maior impacto, as desgraças mais avassaladoras, os golos da selecção, casamentos e divórcios… enfim, um sem-número de coisas que tanto podem ser insignificantes como fundamentais; aliás, se houver aí espaço para os melhores eventos culturais do ano já é uma sorte! Portanto, toca cá a fazer contas e saber o que temos a ver e a haver (e a dever).

Parece-lhe demasiado? Embora foneticamente semelhantes, “ter a/que ver” e “ter a haver” são expressões díspares e muitas vezes maltratadas. Se o mundo lhe deve (dinheiro, reconhecimento, gratidão, paciência e por aí fora), então você tem a haver; se tudo o que eu escrevi até agora não lhe interessa coisíssima alguma, então não tem que ver. Consigo. “Ter a haver” equivale a “ter a receber” e é muito popular no território da contabilidade; se acrescentar a proposição “de”, remete logo para o devedor. “Ter a/que ver” (alguns gramáticos consideram o uso da preposição “a” um francesismo) significa, desde logo, envolver o eu ou o outro num assunto, por isso, e nesses casos, precisa de “com”. Nada tenho a ver com o falhanço da cimeira ambiental em Copenhaga — um belo exemplo do uso da tal expressão, mas pouco exemplar no resto. O planeta Terra tem a haver maior consciencialização ambiental — outro belíssimo exemplo de frase. Mais frases poderiam surgir que tivessem que ver com estas expressões. Ver não é só olhar, é também compreender e relacionar; pode ser conhecer, examinar, deduzir, avistar; até pode ser imaginar. Um ano melhor. Tudo tem a ver.

Feliz 2010!

Publicado no Açoriano Oriental a 27 Dezembro, 2009

21/12/2009

PSSST!

Pacote de Natal
Já chegou. Praticamente…
Chega o Natal e, também, a azáfama dos votos, postais (caixa postal electrónica inundada), mensagens de SMS, a ocasional carta ou cartão e, claro, muitos acenos, muitos votos, muitos desejos. Fica a garganta seca e a imaginação esgotada. Nesta época, gemo sob o peso de uma atroz dúvida: devo apenas desejar Feliz Natal, com validade até ao dia 24, e passar novamente pelo mesmo martírio para, até 31, desejar Bom Ano? Devo optar pelo pacote 2 em 1 — Boas Festas — e assim arrumar os votos de uma vez por todas? Ou sucumbo a ambos? Ambos os dois?
Se pensam que me apanharam num erro, estão enganados. Talvez tenha cometido uma impropriedade de estilo, mas a expressão pleonástica “ambos os dois” não está errada, apenas deslocada — se for um discurso cuidado, elegante, não a use; se for um registo informal, não se amofine.
“Ambos” pode receber o artigo desde que a seguir o substantivo esteja declarado, mas também pode guardar o artigo para outra ocasião (empreste ao Português do Brasil, por exemplo); por outro lado, se é “ambos” é porque são dois, daí o bendito pleonasmo.
“Ambos” refere-se a dois, nunca a mais do que isto. Com “ambos”, três é demais. Bem… depende. Se disser «os dois amigos conversaram», a conversa foi entre aqueles dois; mas se for «ambos (os) amigos conversaram» então é porque falaram, os dois, com uma terceira pessoa; se a frase for «ambos não conversaram», reescreva e prefira «nenhum conversou».
Creio que vou economizar nos votos: opto pelo pacotito. Se depois despender mais do que o previsto, olha, logo se vê… peço ajuda ao Pai Natal.
Boas Festas!
Publicado no Açoriano Oriental a 20 Dez. 09

14/12/2009

PSSST!

Espartanamente espartilhada
Esta deve ser, das que já escrevi, a coluna mais adequada à época. Não sei se é da (longuíssima) antecipação do Natal ou da ventilada crise, mas entrei em dieta. Ou em regime. Sinceramente… não sei, pois uma dieta em princípio implica um regime. Mas os princípios já não são o que eram, para parafrasear.
Regime ou regímen (aqui, não esquecer o acentozito!) significa um modo, um regulamento, um procedimento, seja de governar, de comer ou de agir. Gramaticalmente, regime é igual a regência, a relação que as palavras e as orações têm entre si através da sintaxe. Na questão da nutrição, é um conjunto de normas que influencia o comportamento alimentar. Já uma dieta é um regime alimentar “cozinhado” de forma a adequar-se às necessidades particulares de cada um; pode também significar a redução ou privação total/parcial de algum alimento, ou a confecção de pratos pobres em gorduras e calorias. Postas as coisas assim, acho que estou mas é em dieta, principalmente por causa da privação.
O que nos faz resvalar para o início do texto, para aquele apontamento sobre a crise. Uma crise será um regime? Espartano ou espartilhado? Ou será uma dieta? Talvez a última hipótese, até porque uma dieta é capaz (ênfase na incerteza) de durar menos que um regime; e porque a palavra dieta também significa uma assembleia legislativa — isto em certos países e arcaicamente, claro, nada de modernices…
Da próxima vez que alguém me disser que está a crescer em termos pessoais, eu declaro que ainda bem, porque se for para crescer de outra forma e com a minha idade, já fico assustada. Além disso, estou em dieta.
Publicado no Açoriano Oriental a 13 Dezembro 09

07/12/2009

PSSST!

De que 1º
Até que ponto é uma pessoa influenciada pela publicidade? Para passar à fase seguinte, por favor escolha uma resposta: muito, às vezes, nada. Se disse nada, mentiu. Se disse muito, aconselho uma profunda revisão da sua filosofia de vida. Se escolheu às vezes, é uma pessoa perfeitamente normal. O problema é que nem sempre a língua portuguesa fica bem na fotografia…
Num anúncio em voga na televisão, a protagonista pergunta “o que estão a falar?”. Piiiiiiii! Errado. Noutro, ouço qualquer coisa como “50% de desconto nas marcas que mais gosta”. Piiiiiiii! Errado. E porquê, diga-me? Não sente falta de alguma coisa? De quê? De de. Exacto, de uma palavrinha tão pequenina, de uma minúscula e aparentemente insignificante preposição, de…
Há verbos e nomes que precisam da preposição “de” para ficarem completos. Lembrar, esquecer, gostar, avisar são alguns dos verbos em que, na esmagadora maioria das vezes, o singelo “de” é necessário. Faça um teste: se o complemento ao verbo ou ao nome puder ser substituído pelo demonstrativo “isso”, então o “de” é essencial. Você gosta isso ou gosta disso? Lembra-se isso ou lembra-se disso? E quando entra a meio de uma conversa, pergunta o que falam ou do que falam? Falam de, sem dúvida, de algo ou de alguém, conforme o grau de coscuvilhice. O fenómeno da queda do “de” junto do “que” é tão comum que até já foi baptizado: queísmo.
No entanto, o assunto não se resolve de forma assim tão linear, pois casos há em que o “de” é opcional e outros em que o parzinho “de que” está em demasia. Lembrem-me de que isso fica para uma próxima…

Publicado no Açoriano Oriental a 6 Dez. 09

01/12/2009

PSSST!

Aguardem-me!

Ontem, por acaso, ouvi (foi mais bisbilhotado do que ouvido…) uma frase que me fez arrebitar as orelhas e, talvez, eriçar o pêlo. Era uma pergunta inocente mas que alegremente punha o dedo numa feridita muito comum da língua portuguesa: a colocação de um “a” logo no início de algumas palavras. E se em alguns casos pouco muda, noutros a diferença é essencial.

Um dos que mais gosto é “alembrar”. Bem alembrado, sim senhores! Alembrar é a versão popular de lembrar, sem perda de significado e com brinde — a prótese do “a”, que é como a gramática rotula este fenómeno fonético. Assoprar e soprar, alevantar e levantar, arrecuar e recuar, assentar e sentar, são casos semelhantes, brinde incluído e tudo. No caso do verbo assentar, há uma certa exclusividade de significados: em “assentar a cabeça” ou “assentar arraiais”, não me parece que o singelo “sentar” consiga substituir o colega. E depois há o par aguardar/guardar; apesar de muitas vezes usados como sinónimos, o fosso semântico que os separa é mais que fosso, é abismo. Mas a tendência de colocação do “a” é mais forte e a confusão gera-se. Quem espera nem sempre guarda… paciência.

Deixo um último desafio. E aboiar? Aquele nosso aboiar que é como quem diz atirar com muita força: aboio-te pela janela abaixo? É = a+boiar? Segundo o dicionário, aboiar tanto pode ser boiar, falar com os bois (para que se esforcem no trabalho), prender um barco a uma bóia ou marcar um lugar com uma bóia. Por seu lado, boiar tanto pode ser flutuar, como falar com os bois ou chamar com voz muito alta. Do atirar (que não faz par com tirar), nada. Acho que vou mas é aboiar com o dicionário!

Publicado no Açoriano Oriental a 29 Nov 09