10/05/2010

Não há tascas como as do Senhor!

Porque as pessoas não vivem só de fé no Senhor Santo Cristo dos Milagres, há que alimentar o corpo. E já que esta é uma festa tipicamente açoriana – micaelense, de origem – nada como os petiscos da terra.

Comecemos pelo perímetro do Campo de São Francisco.

Por entre o rodopiar do carrossel, o “bum-tchibum” das filarmónicas e o troar dos altifalantes, aí, para entretenimento das crianças e desespero dos pais, abundam os galinhos de açúcar (em variantes multicolores), as batatas fritas estaladiças, as pipocas – antigas freirinhas brancas – os tremoços ou as nuvens de açúcar...

E que, nesses dias, se descartem as preocupações com uma dieta equilibrada ou se não pense na conta do dentista: três dias não são todos os dias!

Depois, quem sobe a Avenida Roberto Ivens, sob o tépido sol de Maio, é logo inundado pelos aromas do polvo guisado, dos torresmos torriscadinhos, das febras grelhadas, das iscas de fígado em abundante molho ou do fiel bife de vaca com generosas tiras de pimenta. Aliás, pimenta é sabor que nunca falta nos acepipes micaelenses, como se pode comprovar pelo ar cerradamente rubro dos tradicionais caranguejos do Senhor Santo Cristo.

Se a fome for pouca, há sempre os petiscos, que vão desde os humildes tremoços até ao regional chouriço, passando pelo inhame ou batata inglesa com massa de pimenta, os ovos de codorniz mergulhados em vinagre, as favas tenras ou a morcela reluzente. Para aconchegar bem o estômago, aconselha- -se o pão de milho, broa de devoção, ou o pão caseiro (se lhe propuserem uns papo-secos tresmalhados, faça ar de ofensa e mande de volta... ) para quem não perde pitada de um molhinho denso de sabor.

E se quiser uma solução de compromisso – conceito muito em voga – pode sempre recorrer ao prego ou à bifana no pão. Aí, o papo-seco é obrigatório.

Para regar, o vinho ou a cerveja, abundantemente consumidos – não desse tanta pimenta uma sede descomunal! E nem importa se o gosto fresco da cerveja se mistura com o travo a plástico dos copos; importa é o refrigério e a alegria de partilhar uma “loura” no meio da turba que não pára de passar. Aos teatotallers, resta sempre a Laranjada (quem não tem, da sua infância, memórias das bolhinhas de Laranjada a invadirem o céu da boca? – outros falariam do pirolito, mas isso já é jurássico!).

Como sobremesa, sem excepção, o gelado. Sucesso garantido, há p’ra menina e p’ro menino, é só descascar.

O cenário assemelha-se se, ao invés da Avenida, formos para os lados do Forte de São Brás, seguindo a maré do povo que visita a Feira... com a diferença que aí reinam as tasquinhas dos jovens finalistas de curso (com algumas comidas confeccionadas pelas suas diligentes mamãs) ou as de menus exóticos de países longínquos; se, ao degustar uma muamba ou uma cachupa, fechar bem os olhos, até acredita que mudou de latitude.

Se o objectivo é uma escolha mais formal (que isto das tascas tem muito que ver com a capacidade de uma pessoa aguentar-se de pé!), os restaurantes da cidade, próximos ou não do Campo de São Francisco, aderem em massa ao frenesi da altura; resultado, não há um espaço onde se possa digerir pacatamente uma refeição qualquer sem se ser invadido por visitantes ou peregrinos famintos de comida e consolados de fé. As ementas, bem, não variam muito das do resto do ano, mas que importa, são as Festas.

Contabilizando: entre balões e gelados para os miúdos, petiscos para o grupo, desenrolar de rifas e o apelo dos bazares, se calhar o gasto chegava para um plácido fim-de-semana no Hotel das Furnas, cozido incluído.

Mas, diga-se o que disser, não há nada como a excitação de percorrer as tasquinhas, os recantos, as barraquinhas e os tabuleiros da festa do Senhor. Pois o arraial é tradição bem portuguesa e se conseguirem encontrar uma só festa religiosa sem petiscos, eu arrumo a caneta e rendo-me às evidências.

Maria das Mercês Pacheco

(texto publicado há 500.000 anos numa revista apelidada 'Vidas', edição única)

1 comentário:

Maria dos Açores® disse...

É pena que este ano a Avenida Roberto Ivens esteja tão despida sem as barraquinhas. Até parece um domingo normal sem carros estacionados e com mais algumas pessoas que o normal.